Alfredo Rocco, o arquiteto do Estado fascista
A famosa “Carta del Lavoro”, que inspirou a nossa CLT, foi obra do gênio jurídico do nacionalista Alfredo Rocco, Ministro da Justiça de Benito Mussolini, e é a construção jurídica que serviu de espinha dorsal do sistema corporativo fascista.
Alfredo Rocco, embora tenha sido um jurista de destaque nas áreas de direito civil, penal e comercial, será analisado pelo impacto de suas ideias políticas na síntese da ideologia fascista. Notadamente, teve papel de destaque como Ministro da Justiça do governo Mussolini, entre 1925 e 1932, em cuja capacidade estruturou juridicamente o Estado totalitário. Este artigo analisará as concepções sociopolíticas de Rocco e sua abrangente influência na ideologia fascista.
Para Rocco, o homem é um animal essencialmente político e comunitário: “é na comunidade que o indivíduo se torna efetivamente livre, porque encontra sua razão de ser apenas como parte do todo”.1 A sociedade é concebida como uma entidade orgânica que abarca e dá sentido a todas as suas partes individuais, como as empresas, organizações, famílias e indivíduos, tornando-se a medida de validade das vontades e ações. De fato, para Rocco a sociedade é “um organismo que persegue seus próprios objetivos e os indivíduos são apenas órgãos em vista desse propósito superior e transcendente”.2 A concepção orgânica da sociedade e da essência social do indivíduo desemboca, inevitavelmente, numa ideia de liberdade vinculada às relações sociais dentro da própria sociedade: o indivíduo é livre quando se encontra em harmonia com o todo da sociedade, do mesmo modo que um órgão encontra sua razão de ser cumprindo sua função em prol do organismo maior.
O Estado, como consequência dessas concepções orgânicas, surge como o representante jurídico e de facto da sociedade, que se incumbe de organizá-la juridicamente e economicamente. Rocco mesmo afirma que a
originalidade do nosso movimento reside precisamente nisto: querer construir o Estado forte e fazer triunfar o princípio da organização, não com base no privilégio de poucos, mas no enquadramento das massas e na sua participação na vida do Estado”.3
O “enquadramento das massas” à vida do Estado é essencial para Rocco, porque a sociedade, concebida organicamente, somente pode funcionar corretamente se todas as suas partes estiverem sob o poder do Estado e funcionando harmoniosamente. Rocco não aceita que possa existir uma sociedade justa e bem-sucedida em que as partes estejam em confronto com o todo, isto é, o indivíduo esteja em confronto com o Estado.
Por causa disso, Rocco naturalmente se posiciona como um inimigo declarado do liberalismo individualista e econômico. Diante da situação de desenvolvimento econômico retardado da Itália de sua época, Rocco considera o Estado liberal como “a expressão da vontade incoerente das multidões amorfas e inorgânicas, puras somas de indivíduos, incapazes de compreender e realizar nada além de seus interesses individuais”, e mesmo que “os homens” sejam “excelentes, é o organismo que não funciona por inépcia natural”.4 Em seu famoso artigo “Il principio economico della Nazione”, Rocco faz seu juízo final do liberalismo:
Mas talvez ainda mais grave seja o erro do liberalismo econômico de esquecer a função social da produção ou de ignorar os elementos morais e políticos que têm importância tão decisiva no próprio fenômeno econômico. O materialismo, que é a essência da doutrina política econômica liberal, está fadado a se degenerar no egoísmo mais míope. À isso devemos o nascimento e desenvolvimento do socialismo. Não é um paradoxo. O socialismo é filho do liberalismo econômico. Marx é uma derivação de [David] Ricardo.5
Nessa citação, está contida a já aludida ligação que Rocco faz do liberalismo com o socialismo por meio do individualismo materialista e o seu “egoísmo mais míope”, como também a opinião de que a produção econômica deve ser guiada por “elementos morais e políticos”, ao invés de ser deixada ao livre-mercado. Certamente que Rocco não deseja, com essa crítica, uma economia socialista de estilo soviética, porque, na sua concepção, o principal objetivo do socialismo marxista é a distribuição de riqueza entre uma classe específica, o que era um absurdo considerando a situação de subdesenvolvimento da Itália. A sua visão econômica é, como pode ser intuído, uma produção nacional fora dos quadros do individualismo liberal e do socialismo marxista: “Aceitamos, portanto, o princípio da iniciativa individual e da propriedade privada da doutrina liberal, embora com um espírito completamente diferente”, em que “a organização privada da produção, a propriedade privada do capital, não é feita no interesse individual, mas no interesse nacional”.6
Essa ideia de uma produção nacional pode ser melhor compreendida tendo em mente que Rocco e os nacionalistas desejavam, por meio da criação de um poderoso Estado interventor, controlar, mesmo que indiretamente, todos os aspectos da produção nacional para debelar o que eles consideravam uma crise descentralizadora oriunda do século XIX, no qual foi preciso “traçar um programa econômico e político que propunha não apenas o aumento da produção interna”, mas “também o controle férreo da produção e das massas, em contraste com a neutralidade e o não intervencionismo do liberalismo”.7 Para restabelecer a força do novo Estado “era preciso inverter o curso e estabelecer uma hierarquia de valores diferente: em escala ascendente, os indivíduos, os grupos e a nação”.8
As classes sociais, nessa ótica, não são outra coisa senão órgãos da sociedade e, como tais, também devem ser postas sob a jurisdição do Estado e da vontade coletiva, motivo pelo qual a ideia marxista de uma classe proletária é relativizada e condicionada às necessidades da nação. Rocco é enfático quanto a importância da classe trabalhadora para a missão nacional do novo Estado:
A elevação das classes trabalhadoras é uma condição favorável para o desenvolvimento econômico e político da nação, devendo, portanto, ser favorecida em todos os sentidos, ainda que colida com os interesses de outras classes sociais.9
Contudo, como a primazia do poder estatal é absoluta, a influência da classe trabalhadora é limitada ao se tornar “um obstáculo ao progresso da nação, afetando as próprias fontes de produção, ou pondo em perigo a paz social, ou absorvendo uma parte excessiva dos recursos do Estado”.10 Do mesmo modo, a “classe burguesa não é uma classe fechada como era, sob o antigo regime”, mas “é algo como um imenso canal, aberto por baixo e por cima”, de onde a conciliação das classes pode ser feita por meio da direção do Estado nacional.11 A força centralizadora do Estado serve para disciplinar os seus órgãos, tanto proletários quanto burgueses, a fim de concretizar uma nova ordem hierárquica em que a vontade da coletividade se faça presente por toda a sociedade, e pode-se exemplificar melhor essa questão com o tratamento que Rocco deu aos sindicatos.
Rocco reconhece que o sindicalismo se tornou um “fenômeno grandioso da vida moderna que agora se tornou incoercível”12, mas que estava se degenerando, devido à ausência do Estado liberal. O moderno sindicalismo havia se tornado uma ameaça à estrutura da sociedade, devido aos excessos cometidos pelas indústrias capitalistas que brutalizavam o proletariado sob a justificativa do credo liberal que impedia qualquer atuação estatal para resolver a situação, e a luta de classes, nesse contexto, apenas se aguçava a níveis inaceitáveis:
O Estado liberal, fiel ao dogma da não-intervenção, deixou as coisas seguirem seu caminho, e que a miséria dos trabalhadores braçais espalhasse descontentamento”, ampliando o “espírito de rebelião entre as massas.13
Rocco deixa claro que o “livre jogo das leis econômicas” e a insistente ausência praticada pelo Estado liberal engendraram o estado de coisas que possibilitou a emergência do socialismo da luta de classes, criando numa classe social específica a consciência de lutar pelos seus interesses pessoais às custas da harmonia social. A solução, para Rocco, inicia-se pondo fim à atitude passiva do Estado oriunda do falido liberalismo, recolocando o Estado no centro da vida social. Em seguida, o Estado deve absorver os sindicatos e “torná-los seus órgãos”, mas não apenas pelo reconhecimento jurídico do sindicato:
Para obter este resultado, não basta o simples reconhecimento, é necessária uma transformação muito mais profunda. Por um lado, é necessário proclamar a obrigação dos sindicatos e, por outro, colocá-los resolutamente sob o controle do Estado, determinando com precisão suas funções, regulando sua fiscalização e proteção em uma forma de autossuficiência que seja não excessivamente liberado. Mas, sobretudo, é preciso transformá-los de instrumentos de luta pela defesa de interesses particulares em corpos de colaboração para a consecução de fins comuns.14
Ao estatizar os sindicatos, o novo Estado está se movendo para a constituição de uma economia corporativa em que as forças produtivas da nação se transformam em membros da unidade orgânica da sociedade. Transformar as forças produtivas e sociais em membros de cooperação nacional é a essência do corporativismo nacionalista, porque corporativismo vem do latim corpus, significando que os grupos de associação e produção são apenas partes de uma organização maior que é o corpo social. Nas mãos dos nacionalistas, o corporativismo se volta para a constituição orgânica do Estado que, como um corpo biológico, possui vários membros que colaboram para o funcionamento de todo o organismo. A socialização dos sindicatos dentro da estrutura do Estado nacional serve não apenas uma função de controle social, mas de prática econômica do próprio Estado:
O Estado teria finalmente, nos sindicatos assim constituídos, os órgãos técnicos para desempenhar as suas diversas funções econômicas, que a necessidade lhe impôs, mas que até agora sempre desempenhou mal.15
Os sindicatos deixam de ser um órgão de luta das classes para se tornarem extensões administrativas e nódulos executores da ordem do Estado de forma a concretizar os objetivos econômicos da nação.
Rocco, sendo primeiramente um jurista, deseja possibilitar, por meio da nova estrutura sindical nacionalizada, o funcionamento de um tipo de justiça inexistente na antiga ordem liberal, mas que tem uma importante função na ordenação das forças produtivas nacionais e na harmonização entre as classes dos produtores: a justiça trabalhista. O novo ordenamento jurídico do sindicalismo nacional rocchiano celebra a harmonização das relações trabalhistas graças “ao estabelecimento de um diálogo direto entre patrões e trabalhadores” no seio da estrutura corporativa, por exemplo, no estabelecimento da jornada de trabalho de oito horas diárias, saudado por Rocco como o resultado emblemático da “colaboração voluntária de industriais e trabalhadores”.16
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Essa evolução legislativa é natural quando se lembra que todo o esforço de Rocco se centra na tentativa de aglutinar no Estado as forças sociais e produtivas que no século anterior se encontravam soltas e em conflito umas com as outras, e é apenas natural que as relações de trabalho — consequência da relação entre as classes — também acabaram sendo incorporadas na estrutura do Estado corporativo. Como expressão máxima da sociedade, o Estado, por meio dos seus sindicatos nacionalizados, exerce sua jurisdição harmonizando as relações de trabalho no intuito de impedir a luta de classes e dirigir a produção nacional.
Rocco e os nacionalistas dão um nome para esse novo tipo de Estado corporativo que introduz a justiça trabalhista nas relações produtivas da nação, um nome que o leitor brasileiro provavelmente já ouviu: o Estado Novo.
REFERÊNCIAS:
SIMONE, Giulia. Tutto nello Stato. L’itinerario politico e culturale di Alfredo Rocco. Venezia: Università Ca’Foscari Venezia, 2010, p. 323.
CHIODI, Giovanni. Alfredo Rocco e il fascismo dello Stato totale. Em I giuristi e il facismo del regime (1918- 1925), a cura di Italo Birocchi e Luca Loschiavo. Roma: Roma Trepress, 2015, p. 114.
SIMONE, 2010, p. 105.
ROCCO, Alfredo. Scritti e discorsi politici, Vol. II. La lotta contra la reazione antinazionale (1919-1924). Milano: Dotta. A. Giuffré Editore, 1938, p. 586.
Ibid., p. 718.
Ibid., p. 719.
CHIODI, 2015, p. 105.
Idem.
ROCCO, Alfredo. Scritti e discorsi politici, Vol. I. La lotta nazionale della vigilia e durante la guerra (1913-1918). Milano, Dotta. A. Giuffré Editore, 1938, p. 22.
Ibid., p. 22-23.
Ibid., p. 23.
ROCCO, Alfredo. La crisi dello Stato e i sindicati. Padova: La Litotipo Editrice Universitaria, 1921, p. 26.
Ibid., p. 23-24.
Ibid., p. 26.
Ibid., p. 27
D’ALFONSO, 1999, p. 353