Hitler e o nêmesis judaico
Hitler não era apenas um antissemita, mas um revolucionário cujo objetivo era salvar a humanidade por meio da destruição do “nêmesis judaico”.
Há duas semanas, eu postei este artigo sobre o socialismo ariano de Hitler, explicando como o socialismo estava alinhado com as características genéticas altruístas e coletivistas da raça ariana, desenvolvidas ao longo do seu processo evolutivo nas intempéries geladas do Norte. Para Hitler, portanto, o verdadeiro socialismo era ariano e somente poderia ser construído pela raça ariana, devido ao altruísmo intrínseco, ao amor pelo trabalho e à propensão ao sacrifício pela coletividade. Contudo, essa é apenas metade de sua visão histórico-revolucionária: o outro lado da moeda é o seu verdadeiro inimigo — o judaísmo.
Enquanto o marxismo entende a história como uma dialética da matéria, que desemboca em conflitos inevitáveis entre as classes sociais, o hitlerismo percebe a história como uma dialética da evolução humana, que culmina em uma igualmente inevitável e apocalíptica luta de raças: o arianismo versus o judaísmo. Mas por quê? Vamos entender melhor.
Uma vez que Hitler havia desenhado a raça ariana como evolutivamente altruísta, ele aponta que o seu nêmesis, a raça judaica, distinguia-se por uma característica evolutiva completamente contrária à ariana: o egoísmo. Aqui há uma peculiaridade no pensamento de Hitler que não se alinha com a maior parte da tradição darwinista do século XIX, na qual ele considerava o judaísmo não uma religião ou cultura religiosa, mas uma raça biologicamente determinada da mesma forma que a raça ariana. De fato, a ideia de que os judeus fossem uma raça biológica é estranha à maioria dos pensadores darwinistas e racistas até a virada do século, e mesmo o Conde de Gobineau, o patriarca de todos os racistas modernos, frequentemente elogiava a coragem e a resiliência judaica e não os pintava como uma raça no sentido biológico. Essa inversão só começou a surgir no final do século XIX com antissemitas como Wilhelm Marr, Eugen Dühring e Houston Stewart Chamberlain[1]. Hitler certamente foi influenciado não apenas pelo darwinismo, mas pela ideia de que o judaísmo se constituía como uma raça biológica e, portanto, que possuía suas características próprias oriundas de sua peculiar evolução no decorrer dos séculos.
Para Hitler, assim como a raça ariana evoluiu para se tornar altamente altruísta, a raça judaica evoluiu para se tornar o oposto: egoísta. Hitler expressou sua visão da característica egoísta do judeu como um traço genético e evolutivo de forma bastante direta e contundente ao afirmar, por exemplo, que "o ariano entende o trabalho como a base para a preservação da comunidade do povo, o judeu o vê como um meio de explorar outros povos", e isso ocorre porque o judeu "traz dentro de si os traços de caráter que a natureza lhe deu, e nunca pode se livrar disso”[2]. Nota-se o peso que Hitler quer dar à inevitabilidade do traço genético egoísta da raça judaica ao declará-la determinante para o comportamento do judeu, independentemente de sua vontade ou consciência, o que ressalta ainda mais a visão de mundo social darwinista do Führer. Pode-se citar outras falas nas quais a mesma ideia de um determinismo racial e genético é aplicada às características egoístas do judeu em contraposição ao ariano altruísta:
Hitler vê a principal diferença no caráter da raça germânico-ariana e da raça judaica em suas posições fundamentalmente diferentes em relação ao trabalho como um fim em si mesmo ou como um meio para um fim. Ver o trabalho como um fim em si mesmo era, claro, a posição dos arianos, enquanto o trabalho como meio e fim caracterizava os judeus[3].
Hitler, claramente, cria uma oposição irreconciliável entre a raça ariana e a judaica porque o que não apenas as separava, mas as colocava numa rota de colisão, eram as respectivas características genéticas de cada uma, desenvolvidas durante milhares de anos e, por isso mesmo, inexpugnáveis. Não que Hitler acreditasse num determinismo biológico absoluto no sentido de ser inalterável, o que contradiria a própria ideia evolutiva do darwinismo, mas devido ao fato que a mudança das características genéticas das raças se dá apenas em longuíssimos períodos de tempo, qualquer tentativa de reeducação do judeu seria em vão. Nesse sentido, há uma intrigante passagem dos diários de Joseph Goebbels que relata de uma maneira quase cômica esse posicionamento de Hitler. O contexto é o seguinte: Hitler e alguns hierarcas estão discutindo como resolver a "questão judaica", e antes de optarem pela infame "solução final" que desembocará no Holocausto, foi sugerido exilar os judeus na Sibéria, ao qual Hitler, segundo Goebbels, respondeu: o "Führer também não deseja que os judeus sejam evacuados para a Sibéria. Lá, sob as mais duras condições de vida, eles sem dúvida voltariam a representar um elemento vital”[4]. Hitler está dizendo que, caso os judeus fossem exilados na Sibéria, o ambiente hostil os levaria a desenvolver qualidades genéticas tipicamente arianas como o altruísmo e o amor ao trabalho, representando, portanto, uma ameaça ainda mais considerável à raça ariana. Certamente que isso tudo é pseudociência e nos soa cômico, mas é inegável que Hitler considerava a possibilidade de que as raças continuariam a se desenvolver e, portanto, a incompatibilidade entre judeu e ariano poderia não ser eterna. No entanto, também é igualmente claro que, no contexto no qual Hitler e seus asseclas estavam atuando, a tarefa de "arianizar" o judeu era completamente impraticável, e a ameaça judaica teria que ser enfrentada por outros métodos mais agressivos e cruentos.

De qualquer forma, é interessante notar que, como acontece com toda concepção de socialismo, o socialismo ariano de Hitler também elege o seu explorador, isto é, o grupo de indivíduos que serve como o bode expiatório pelas mazelas sofridas pelos grupos percebidos como oprimidos, neste caso a nação alemã-ariana. Aqui é pertinente demonstrar que Hitler, como todo socialista, era adepto da teoria do valor-trabalho para explicar a natureza do fenômeno valorativo na realidade econômica. Embora Hitler não tenha escrito suas concepções econômicas de maneira sistematizada, há trechos de suas falas e discursos que nos mostram exatamente como ele via o problema do valor na economia, como no supracitado famoso discurso Warum sind wir Antisemiten?, no qual se reconhece que a “oficina e a ferramenta, a máquina e a fábrica em si não são um valor produzido por si próprio, mas apenas um meio para um fim”, isto é, que só “se torna produtor de valor quando se trabalha com eles”, concluindo, por fim, que “o que produz valor é o trabalho”[5]. Relembremos que Hitler atribui ao ariano a virtuosa característica genética de ver o trabalho como um fim em si mesmo, isto é, de, primeiramente, amar o trabalho pelo próprio ato de trabalhar antes de quaisquer considerações egoísticas ulteriores, e isso se alinha perfeitamente com sua aceitação da teoria do valor-trabalho: o valor dos fenômenos econômicos só pode ser oriundo do trabalho porque a raça ariana é a única raça que evoluiu para produzir esse valor de forma altruística e em prol da comunidade, tornando-a moralmente superior dentro do processo econômico porque o valor do trabalho se alinha com uma atitude moral considerada superior.
Em contrapartida, o judeu, devido às suas características genéticas individualistas e egoístas, evoluiu não para ver o trabalho como um fim em si mesmo, mas como um meio para um fim, isto é, o lucro. Segundo Hitler, a genética judaica impelia os judeus a sempre visarem o interesse individual acima dos valores comunitários e, portanto, colocava-os diretamente em colisão com a moral altruísta dos arianos, resultando numa inevitável relação de exploração: o sagaz e egoísta judeu se aproveitando da boa natureza altruísta do ariano para furtar-lhe a riqueza através da exploração econômica. De fato, baseado nessas premissas, Hitler concluiu que os judeus não apenas "não faziam contribuições econômicas reais para a sociedade", mas "usavam táticas astutas e ardilosas para forçar os outros a produzirem para eles", uma personificação do "capitalista ganancioso que explorava o trabalho das pessoas (arianas) comuns”[6]. Está claro, portanto, que a contraposição do altruísta e socialista ariano com o egoísta e capitalista judeu, baseado em supostas características genéticas de ambas as raças, era a principal tensão irreconciliável dentro do pensamento hitlerista, e não parece ser coincidência que, assim como no socialismo marxista há uma tensão irreconciliável entre duas classes sociais antagônicas, o socialismo ariano também se potencializa por uma dinâmica conflituosa entre duas raças cuja ominosa resolução todos já conhecemos.
Durante muito tempo, historiadores e cientistas políticos negligenciaram os aspectos mais filosoficamente importantes dessa contraposição elementar entre judeu e ariano no pensamento de Hitler, e de fato, uma historiografia mais recente e especializada revelou que os polos dessa tensão se encontram profundamente interligados numa relação de retroalimentação para justificar seus respectivos papéis:
O judaísmo, ao contrário, aparecia como uma parte indispensável de uma mentalidade que dependia explicitamente de antagonismo, necessitando de uma imagem negativa claramente delineada para afirmar ainda mais enfaticamente o valor de sua própria existência. O arianismo e o judaísmo estavam interligados de forma complementar, assim como ação e reação, tese e antítese. Pois não apenas o judaísmo dependia da liderança cultural ariana para alcançar sua existência "parasitária" na história, mas também para o ariano, embora não fosse uma condição para sua existência, era uma espécie de força impulsionadora negativa para chegar à consciência de seu próprio valor em confronto com a suposta raça adversária, e assim se encontrar verdadeiramente.[7]
É perceptível que Hitler tinha um pensamento histórico moldado por uma verdadeira dinâmica dialética entre dois princípios mundiais antagonistas, mas interligados, o que o colocava, como autoproclamado Führer da nação ariana, no centro do próprio embate histórico mundial. Contudo, essa tensão, embora necessitasse da existência dos dois polos para manter-se viva e tensionada e, portanto, capaz de validar os papéis das raças em questão, eventualmente teria que ser resolvida com a eliminação de uma delas. A consciência da inevitabilidade da resolução do conflito mundial entre a raça ariana e a raça judaica enquadrava o embate numa moldura épica e, de fato, assim como a famosa luta de classes marxista, o contraste entre ariano e judeu no pensamento de Hitler também tomou dimensões apocalípticas como justificativa para sua visão histórica:
É verdade que a concepção histórica de Hitler não estava aberta indefinidamente para o futuro. Ela tinha um fim, mas esse fim não era um retorno ao começo, a "era final" de Hitler não era uma "era primordial" reanimada, mas sim a chegada de uma "nova" era após o confronto final entre a raça ariana e a raça judaica, que poderia levar ou ao incêndio apocalíptico do mundo em caso de vitória do judaísmo, ou à cura duradoura do mundo e da humanidade em caso de triunfo ariano. De qualquer forma, isso representava um encerramento definitivo de toda a história até então. E esse encerramento, esse fim da história, não se apresentava como uma possibilidade vaga em um futuro distante e nebuloso. O encerramento e o fim estavam iminentes - a serem concretizados, com certeza, ainda durante a vida de Hitler. Assim, o pensamento de fim dos tempos de Hitler - assumiu o caráter de uma utopia concreta, ou melhor, de uma escatologia concreta, na qual todos os acontecimentos presentes se tornavam uma luta "diante do fim"[8].
Hitler parecia estar ciente dessa fatídica consequência e, de fato, tomava-a como mais uma importante variável nos seus cálculos políticos. Uma das maiores dificuldades de se interpretar a praxis nacional socialista durante seus 12 anos no poder é conciliá-la com os escritos teóricos e ideológicos dos principais intelectuais do partido, e frequentemente se notam gritantes discrepâncias entre as ideias que circundavam nos meios intelectuais e as ações, acordos e alianças realizadas pela liderança político-partidária. O mistério é facilmente resolvido quando lemos com atenção um trecho muito específico do Mein Kampf, no qual Hitler explicitamente afirma que, antes de efetivamente se empenharem na construção da comunidade nacional-socialista ariana, os nacionais-socialistas teriam que destruir o Estado judeu:
Se quisermos transformar nossa imagem ideal do Estado do Povo em uma realidade, teremos que nos manter independentes das forças que atualmente controlam a vida pública e buscar novas forças que estejam prontas e capazes de lutar por esse ideal. Pois será uma luta, uma vez que o primeiro objetivo não será construir a ideia do Estado do Povo, mas sim erradicar o Estado Judeu que atualmente existe. Como frequentemente acontece ao longo da história, a dificuldade principal não é estabelecer uma nova ordem das coisas, mas limpar o terreno para a sua implementação[9].
Por "Estado judeu" Hitler está querendo dizer tanto a influência judaico-capitalista dentro da própria Alemanha quanto a União Soviética que, segundo ele, era controlada por judeus. O que se está querendo explicar é o seguinte: as alianças que o partido nacional-socialista fez durante seus anos no poder não são significativas de uma perspectiva ideológica e, portanto, não podem ser levadas em conta como explicação para uma interpretação do ideário nacional-socialista, pois foram apenas expedientes instrumentais para se alcançar o verdadeiro e mais importante objetivo: a destruição do judaísmo. Somente após a destruição do inimigo judeu e a conquista das terras férteis do leste europeu, o famoso Lebensraum, é que se poderia começar a construção da verdadeira comunidade nacional-socialista ariana.
A tensão histórica primordial entre o altruísmo ariano e o egoísmo judaico estava, portanto, presente desde pelo menos a escrita do Mein Kampf, e ela se torna o principal objetivo político de Hitler como o Führer do Terceiro Reich. Mas o que é interessante notar é que o socialismo ariano de Hitler, apesar de sua notória falta de sistematização, pode ser reconstruído com bastante acurácia uma vez que as bases sociais darwinistas tenham sido feitas: o socialismo hitlerista é uma consequência de sua visão de mundo social darwinista que interpreta as raças ariana e judaica como herdeiras de valores morais irreconciliáveis e, portanto, destinadas ao conflito. A exploração do trabalhador ariano pelo capitalista judeu somente teria fim com a completa emancipação da comunidade ariana do “Estado judeu”, e tal necessidade tomou a forma de uma dialética com desfechos apocalípticos cujo resultado seria ou o fim da raça ariana e, portanto, da moralidade e cultura superiores, ou a derrocada do nêmesis judaico para que a raça ariana pudesse continuar evoluindo como representante mais elevado da espécie humana. Nesse sentido, o pensamento socialista de Hitler tornou-se uma própria escatologia cujo desfecho seria essencial para a construção do verdadeiro socialismo, o socialismo ariano.
[1] KROLL, Frank-Lothar. Utopie als ideologie: Geschichtsdenken und politisches Handeln im Dritten Reich. München, Ferdinand Schöningh, 1998, p. 50.
[2] HITLER, Adolf. Die Hetzer der Wahrheit, em Redens. München, Deutscher Volksverlag, 1933, p. 18-19.
[3] HITLER, Adolf. Partei Politik und Judenfrage, em HITLER, 1980, p. 276.
[4] GOEBBELS, Joseph. Tagebücher, Band 4, 1940-1942. München, Piper Verlag, 1999, p. 1805.
[5] HITLER, 1980, p. 193.
[6] WEIKART 2009, p. 97.
[7] KROLL, 1998, p. 51-52.
[8] Ibid., p. 55.
[9] HITLER, 1943, p. 504-505.
Nós ocidentais temos o dever de lutar contra o neonazismo (antissemitismo), fascismo, globalismo woke, também lutamos contra o eixo russo-chines-iraniano.