Pode parecer estranho o que direi, mas é verdade: ainda nos dias de hoje, sabe-se muito pouco sobre as ideias e concepções socioeconômicas de um dos líderes políticos mais infames – se não o mais infame – da história: Adolf Hitler. Passadas mais de sete décadas após a sua morte, as livrarias, tanto físicas quanto online, estão repletas de biografias que abordam os mais variados aspectos da carreira e da vida pessoal do Führer, desde suas conhecidas atividades como líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (PNSTA) até seus estranhos hábitos alimentares e sexuais. Esse fenômeno – embora presente em menor escala na percepção popular de outras figuras históricas condenadas, como Benito Mussolini – cria o curioso estado de coisas que já era percebido nos anos 80 pelo historiador Eberhard Jäckel, que, ao refletir sobre os motivos que levaram Hitler ao poder, afirmou: “Sabemos muito, mas entendemos pouco sobre como a Alemanha chegou a se entregar a uma ditadura que se revelou de uma criminalidade sem precedentes na história”.1 De fato, a situação continua a mesma: quando se trata de Adolf Hitler, sabemos muito, mas entendemos pouco.
Mas há uma gigantesca e gritante lacuna que, ainda mais porque quase ninguém sequer dá conta, torna-se opressiva na sua ausência: afinal de contas, o que foi a ideologia Nacional Socialista de Hitler? Obviamente, sabe-se que foi uma ideologia maligna, criminosa, imperialista, racista e genocida, e tudo isso já é motivo mais que suficiente para repudiá-la com vigor. No entanto, não é tudo, pois todas essas características daninhas são consequências de um núcleo mais profundo e robusto que é praticamente desconhecido no discurso público e até mesmo nos debates intelectuais mais elevados do país.
Pode-se ilustrar isso com o próprio termo “socialismo” porque, como todos sabem, Nazismo é apenas uma abreviação do alemão Nationalsozialismus – Nacional-Socialismo. Mas por que Hitler decidiu mudar o nome do partido de Partido dos Trabalhadores Alemães para Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães? A resposta usual é que Hitler e seus seguidores se utilizaram do termo socialismo por motivos propagandísticos e pragmáticos, intencionando apenas furtar a classe trabalhadora dos marxistas, e isso é repetido tanto nas escolas quanto por relevantes intelectuais públicos. No entanto, veremos que isso é falso.
Há uma fala importante de Hitler, concedida numa entrevista de 1923 ao jornalista americano George Sylvester Vierec para a Liberty Magazine. Indagado sobre a sua posição em relação ao socialismo e o marxismo, Hitler respondeu:
O socialismo é a ciência de lidar com o bem comum. O comunismo não é o socialismo. O marxismo não é o socialismo. Os marxistas roubaram o termo e confundiram o seu significado. Eu devo retirar o socialismo dos socialistas.
O socialismo é uma antiga instituição ariana e germânica. Nossos antepassados germanos mantinham certas terras em comum. Eles cultivaram a ideia do bem comum. O marxismo não tem o direito de se disfarçar de socialismo. O socialismo, ao contrário do marxismo, não repudia a propriedade privada. Ao contrário do marxismo, não envolve a negação da personalidade, e ao contrário do marxismo, é patriótico.
Nós poderíamos ter nos chamados de Partido Liberal. Escolhemos nos chamar de Nacional-Socialistas. Nós não somos internacionalistas. Nosso socialismo é nacional. Nós exigimos o cumprimento das reivindicações justas das classes produtivas pelo Estado com base na solidariedade racial. Para nós, o Estado e a raça são um.
É uma fala notável, cujos princípios se repetem com alguma constância no decorrer da carreira de Hitler, embora não o façam, miúde, explicitamente. O socialismo seria uma “antiga instituição ariana e germânica”, porque os antepassados dos alemães “mantinham certas terras em comum” e “cultivaram a ideia do bem comum”. Como que Hitler fundamenta essa ideia? Há um discurso onde ele o fez de maneira explícita e cristalina, que nos dá uma exata noção da sua ideia de socialismo ariano. Trata-se do discurso "Warum sind wir Antisemiten?" – "Por que somos antissemitas?" –, que precisa ser citado em sua integralidade; leiam-no com atenção:
O que significa – trabalho? O trabalho é uma atividade realizada não por vontade própria, mas por causa do próximo. Se houver uma diferença entre o homem e os animais, assim é particularmente no trabalho, que não se origina no instinto, mas vem de uma compreensão de uma necessidade.
Dificilmente uma revolução teve um efeito tão profundo quanto a lenta, que gradualmente transformou o homem preguiçoso dos tempos primitivos no homem que trabalha. Quando eu disse que este processo representa uma lenta, mas talvez também a maior de todas as revoluções na história da humanidade, então deve-se supor que também esta revolução teve que ter uma causa, e esta causa foi a maior Deusa desta Terra, aquela que é capaz de chicotear os homens ao máximo – a Deus da Dificuldade [natureza/processo de seleção natural].
Podemos ver essa dificuldade no início da pré-história, sobretudo na parte Norte do mundo, naqueles enormes desertos de gelo onde apenas a existência mais escassa era possível. Aqui, os homens foram forçados a lutar por sua existência, por coisas que estavam, no sorridente Sul, disponíveis sem trabalho e em abundância. O Norte forçou os homens a continuarem suas atividades – produção de roupas, construção de residências. Primeiro, eram cavernas simples, depois cabanas e casas. Em suma, ele criou um princípio, o princípio do trabalho.
Ao mesmo tempo, outro desenvolvimento se seguiu – a terrível dificuldade tornou-se um meio de reprodução de uma raça. Quem estava fraco ou doente não conseguia sobreviver ao terrível período de inverno e morria prematuramente. O que restou foi uma raça de gigantes fortes saudáveis. Mais uma característica desta raça nasceu. Onde o homem é amordaçado externamente, onde seu raio de ação é limitado, ele começa a se desenvolver internamente. Externamente limitado, internamente ele se torna limitado. Quanto mais o homem, devida a forças externas, deve depender de si mesmo, mais profunda vida interna ele se desenvolve e mais ele se volta para dentro.
Essas três conquistas: 1) o princípio reconhecido do trabalho como um dever, a necessidade, não apenas por egoísmo, mas para a preservação de todo o grupo de pessoas; 2) a necessidade de saúde corporal e, portanto, também de sua saúde mental normal; 3) a vida espiritual profunda. Tudo isso deu às raças do Norte a capacidade de ir ao mundo e construir Estados.2

Primeiramente, fica claro que Hitler acreditava na evolução darwinista das espécies – e o confirmou em mais de uma ocasião –3, e que, nessa linha, Hitler claramente interpreta a raça ariana – ou “nórdica” no sentido desse discurso, pois provinha dos “desertos de gelo” do “Norte” – como um conjunto de características que surgiram de um processo evolutivo darwinista. Quando se lê que a dura vida nas intempéries do Norte foi responsável pela morte dos mais fracos e despreparados, restando apenas uma “raça de gigantes fortes e saudáveis”, Hitler está afirmando que o processo de seleção natural gradualmente selecionou os melhores genes arianos e fortaleceu a raça. No entanto, essas características não se limitam apenas às usuais características anatômicas às quais o discurso evolucionista atual faz referência, pois há outras características de natureza diferente que também foram selecionadas no processo de seleção natural no Norte, como o “princípio do trabalho”.
Mas o que isso quer dizer? Essencialmente, é uma característica de comportamento e moralidade que, segundo Hitler, desenvolveu-se dentro da raça ariana durante o processo de seleção natural no Norte. De fato, nos dias de hoje, pode parecer estranha a ideia de que traços de caráter moral, como virtudes e vícios, sejam interpretados como fortemente determinados pelo genótipo de um indivíduo, prendendo-os à linha genética de sua “raça”. Hitler fez referência à hereditariedade genética dos traços morais em mais de uma ocasião, como, por exemplo, num discurso do início dos anos 30, quando afirmou que o “valor inteiro de um povo passa de geração em geração como herança e genótipo”, herança essa que é composta de “traços individuais de caráter, as virtudes individuais e os vícios individuais”, que “sempre se repetem nos povos enquanto sua natureza interior, sua composição genética, não sofre nenhuma mudança essencial”.4
Nesse sentido, Hitler está afirmando que a raça ariana, devido à sua evolução durante milhares de anos nas intempéries do Norte, desenvolveu uma virtude específica para valorizar o trabalho como um fim em si mesmo, o “princípio do trabalho”. Isto é, a habilidade de apreciar o trabalho e o sacrifício em prol da coletividade como um dever altruísta do ariano.
A mais recente historiografia reconhece que, por muito tempo, não houve uma compreensão das bases evolutivas da ética de Hitler e muito menos de sua concepção da evolução da moralidade altruísta da raça ariana. As evidências, nesse sentido, abundam em demasia e tornam impossível negar que Hitler, como afirma Richard Weikart, "acreditava que características morais, como diligência, parcimônia e honestidade, eram características biologicamente inatas", de modo que o "progresso evolucionário não trouxe apenas avanço físico e intelectual, mas também produziu aperfeiçoamento moral”.5 O próprio Hitler, no Mein Kampf, escreveu trechos que não deixam dúvidas quanto à sua visão darwinista da evolução das características morais da raça ariana:
Essa vontade abnegada de dar ao próprio trabalho e, se necessário, a própria vida pelos outros é mais fortemente desenvolvida no ariano. O ariano não é maior em suas qualidades mentais como tal, mas na extensão de sua disposição de colocar todas as suas habilidades a serviço da comunidade. No ariano, portanto, o instinto de autopreservação atingiu a forma mais nobre, já que ele voluntariamente subordina seu próprio ego à vida da comunidade e, se a hora exigir, até o sacrifica.6
Portanto, fica claro que Hitler considerava a raça ariana a mais avançada principalmente porque era a mais altruísta, uma raça cujos indivíduos supostamente se diferenciavam por uma ética de amor pelo trabalho e pela capacidade instintiva de sacrificarem seus interesses pessoais e até a si mesmos em prol de sua comunidade. Essa "superioridade" fora adquirida penosamente pelos arianos durante sua longa luta contra o ambiente hostil dos desertos de gelo do Norte, tornando-a, aos olhos de Hitler, a única raça humana capaz de cultivar o trabalho e a cultura e fundar uma comunidade capaz de não apenas sobreviver, mas prosperar no cruento mundo da competição darwinista.
Nesse sentido, o socialismo de Hitler pode ser encontrado justamente nas características genéticas da evolução da raça ariana:
A luta contra os duros elementos nórdicos tornou uma ética de trabalho absolutamente necessária para a sobrevivência. Assim, ao longo dos tempos os arianos desenvolveram um amor hereditário pelo trabalho, portanto arianismo significa a concepção moral do trabalho e através dela aquilo de que falamos tantas vezes hoje: socialismo, senso de comunidade e bem comum antes dos interesses individuais.7
Um corolário importante dessa fundamentação genético-biológica do socialismo é a sua extensão para a fundamentação da nacionalidade e da nação. O nacionalismo de Hitler não é um nacionalismo como os que atualmente existem; é um nacionalismo igualmente atrelado à raça ariana e seu lugar no mundo. Portanto, não é limitado por uma região geográfica específica, uma jurisdição estatal ou uma cultura histórica, mas especificamente aonde a raça ariana porventura estiver vivendo e exercendo sua influência. Dessa forma, as características que Hitler nomeia de socialistas são as mesmas que fundamentam o seu nacionalismo.
Como ele mesmo diz: "Temos a convicção de que o socialismo em nosso sentido pode e será encontrado com nações e raças arianas", resultando que "o socialismo é inseparável do nacionalismo”.8
Assim, quando Hitler alterou o nome do seu partido e movimento para Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, ele o fez não por mera estratégia política na intenção de confundir e atrair os trabalhadores para sua causa. Isso ocorreu porque ele plenamente acreditava que o verdadeiro socialismo somente poderia ser realizado através da instrumentalização das características genéticas da raça ariana, o que, consequentemente, também fundamentava sua concepção de nacionalismo. "Nacional Socialismo" significa literalmente "Socialismo Ariano".
Esta concepção de Hitler acerca da genética “socialista” do ariano permaneceu inalterada durante toda a sua carreira, embora ele não a dissesse explicitamente, mas é o fundamento de suas propostas econômicas e sociais, como a “igualdade de oportunidades”. Nesse sentido, voltando à entrevista de 1923, quanto Hitler falou que o socialismo é uma antiga instituição ariano-germânica, ele estava se referindo à natureza altruísta e coletivista do ariano que, na sua ancestralidade, demonstrava-a através do uso coletivo das terras.
Não surpreende, portanto, que hoje em dia a maioria das pessoas estejam confusas quanto ao socialismo de Hitler, porque associar o socialismo com virtudes altruístas oriundas da evolução do genótipo ariano é uma ideia que nos é naturalmente estranha. Atualmente, quando falamos em socialismo, o que nos vem automaticamente à mente são questões de luta de classes e socialização dos meios de produção, concepções popularizadas pelo marxismo. No entanto, isso é um automatismo enganoso, porque o socialismo nasceu antes e pode se diferenciar do marxismo, que é apenas uma vertente histórica específica do socialismo.
REFERÊNCIAS
JÄCKEL, Eberhard. Hitler in history. Hanover, Brandeis University Press, 1984, p. 8.
HITLER, Adolf. Warum sind wir Antisemiten?, em Hitler: Sämtliche Aufzeichnungen, 1905-1925. Stuttgart, Deutsches Verlag-Anstalt, 1980, p. 184-185.
Para uma discussão aprofundada sobre se Hitler era um darwinista, entre Robert J. Richards e Richard Weikart, leia: https://www.discovery.org/a/whether-hitler-was-a-darwinian/
HITLER, Adolf. Reden. Schriften. Anordnungen. Februar 1925 bis Januar 1933. Band IV. Von der Reichstagswahl bis Zur Reichspräsidentenwahl Oktober 1930 – März 1932. München, K. G. Saur, 1997, p. 76-77.
WEIKART, Richard. Hitler’s ethic. The Nazi pursuit of evolutionary progress. Palgrave MacMillan, 2009, p. 16.
HITLER, Adolf. Mein Kampf. Zwei Bände in einem Band Ungekürzte Ausgabe. München, Zentralverlag der NSDAP, 1943, p. 325-326.
HITLER, 1980, p. 190.
Ibid., p. 200.
Excelente texto!
Maravilhoso! Já havia ouvido sobre isso mas aqui com fontes é bem melhor.