O real significado da camisa negra fascista
Muitos associam a camisa negra dos infames “camicie nere”, a milícia fascista, com a morte e a violência, mas isso é parcialmente verdade; há um significado mais profundo.
Quando Benito Mussolini famosamente marchou sobre Roma em 1922, ele o fez ao lado de centenas de milhares de militantes do movimento fascista. Eles vestiam camisas negras e orgulhosamente se intitulavam “camisas negras” — em italiano, “camicie nere” — , causando o terror na população italiana.
Mas por que os fascistas usavam camisas negras e se orgulhavam de usá-las? O que elas simbolizavam? Não era pela mera estética, mas detinham um significado muito específico no contexto da criação e ascenção do movimento fascista. A história da camisa negra, contudo, não se inicia com o fascismo.
A tradição de usar camisas coloridas para simbolizar algo relevante nas lutas políticas italianas remonta ao século XIX. Durante a guerra de unificação nacional entre 1850–1870, muitos revolucionários seguidores de Giuseppe Garibaldi (1807–1882) passaram a usar camisa vermelha para simbolizar o ideário revolucionário:
Uma visão desse tipo pressupunha a identificação entre as camisas vermelhas e o patriotismo do sul: isso significava afirmar que os italianos do Sul haviam expressado seu sentimento nacional essencialmente através do garibaldismo. Somente Garibaldi, além disso, que aos olhos do Sul representava a Itália, seria capaz de despertar um autêntico entusiasmo em massa pelo Reino de Vittorio Emanuele.1
Nesse sentido, a camisa vermelha exercia o impacto estético do movimento revolucionário em busca a unificação italiana. O efeito, de fato, auxiliou os revolucionários a unificar a nação, dando início ao moderno Estado italiano, e a herança da camisa vermelha permaneceu forte no imaginário da população mesmo décadas após sua aposentadoria.
O sucecsso e a fama dos camisas vermelhas se estenderam até a Primeira Guerra Mundial, quando ressurgiram para sua missão de defender a nova e unificada Itália do inimigo alemão. Nesse contexto, ninguém menos que o neto de Giuseppe Garibaldi, Pepino Garibaldi, lidera o ataque dos camisas vermelhas contra os alemães e sua demonstração de bravura inspira uma série de nacionalistas e sindicalistas.
Um dos inspirados foi, justamente, o ex-líder socialista expulso de seu partido, Benito Mussolini que, após retornar ferido das trincheiras, decidiu fundar seus próprios movimentos políticos para seus fins nacionalistas e antiparlamentares. Nesse novo contexto de luta política antiparlamentar, Mussolini também fez recurso ao ideário das camisetas coloridas para seus propósitos políticos. Naturalmente, por não se tratar de um contexto de unificação nacional, a cor vermelha, igualmente utilizada por Pepino Garibaldi, não seria mais tão atraente, motivo pelo qual Mussolini teve que eleger uma nova cor para a camiseta do seu movimento: a cor negra.
Até hoje em dia, muita gente acredita que a cor negra do fascismo representa a morte, o ódio e a discriminação, o que simplesmente não é verdade. O contexto de sua escolha é significativa: a Primeira Guerra Mundial. Primeiramente, a cor negra simplifica o luto pelos mais de 400 mil soldados italianos caídos nas trincheiras. Mas o significado foi se alterando conforme o movimento fascista foi ganhando massa de adeptos de várias camadas sociais diferentes. A. James Gregor, que foi professor emérito da Universidade de Berkeley, na California, assim relata o verdadeiro significado da infame camisa negra:
Para os fascistas, nunca se deve permitir de forma alguma que interesses locais, econômicos ou confessionais se tornem o fulcro fundamental da vida individual. As cerimônias e rituais, as demonstrações em massa, o uso da camisa negra (que anulava as distinções de classe e categoria) foram especialmente concebidos para gerar um senso de comunidade e pertencimento ao grupo.2
Nota-se que, ao contrário do que é costumeiro dizer sobre os camisas negras, o seu verdadeiro significado centrava-se num culto ao sentimento de igualdade e pertencimento à unidade nacional. Esse princípio de igualdade buscava superar e anular as “distinções de classe e categoria” ao favorecer o sentimento nacionalista: afinal, trata-se de um movimento nacional-socialista.
Quem pensou que tal significado assemelha-se aos conceitos de “igualdade” das tradições socialistas, está no caminho certo. Deve-se lembrar que a Revolução Russa havia ocorrido recentemente e a ideia do internacionalismo proletário ganhava cada vez mais popularidade entre os comunistas europeus, forçando grupos nacionalistas a contra-atacar. O sentimento de igualdade dentro da nação, uma igualdade independente de classe ou categoria, foi implementado no simbolismo da camisa negra justamente para combater o internacionalismo proletário durante os conturbados anos de ascensão do movimento fascista.
Mussolini, numa famosa e clássica entrevista ao jornalista Emil Ludwig, escreveu o seguinte sobre o significado da camisa negra:
[Mussolini]: O nosso conceito não é analítico, mas sintético da Nação. Quem marcha não se diminui, mas se multiplica por meio de todos aqueles que marcham com ele. Nós estamos, assim, como na Rússia [soviética], pelo sentido coletivo da vida e, ainda mais, queremos fortalecê-lo, custe o que custar à vida individual. No entando, não chegamos ao ponto de transformar os homens em cifras, mas o consideramos principalmente em relação à sua função no Estado. […] É justamente na vida coletiva que reside o novo encanto. Eis o que o fascismo quer fazer com a massa: organizar a vida coletiva, uma vida em comum, trabalhar e lutar em uma hierarquia sem rebanho.3
Naturalmente, esse significado nacionalista e coletivista foi passado do aguerrido e proteiforme movimento fascista para o regime totalitário em construção. A simbologia da camisa negra manteve-se popular na consciência italiana até o fim trágico do regime na Segunda Guerra Mundial, e até mesmo o próprio Mussolini a ressuscitou no intento de levantar a moral dos soldados perto do fim.
Devido às trágicas circunstâncias do fim do fascismo, a camisa negra entrou no imaginário mundial como um anacrônico símbolo de uma ideologia totalitária, nociva e repressiva, e realmente o foi, mas o seu verdadeiro significado embrionário, surgido do luto pelos soldados caídos nas trincheiras e do senso de coletividade nacional, foi muito mais influenciado por ideários socialistas do que suas reinterpretações modernas.
Eva Cecchinato. Camicie rosse. I garibaldini dall’unità alla grande guerra. Roma-Bari, Laterza, 2007, p. 48.
A. James Gregor. L’Ideologia del Fascismo. Il fondamento razionale del totalitarismo. Roma, Lulu, 2013, p. 281.
Emil Ludwig. Colloqui con Mussolini. Arnoldo Mondatori Editorie, 1932, p. 133.
Mussolini esteve presente na Marcha ? Sempre entendi que ele estava em Milão no dia, e o texto faz entender que ele marchou na ocasião com seus comparsas . Fiquei em dúvida.